A primeira vez que viajei de avião, eu tinha dois anos. Meu destino? O Líbano. Uma jornada de quase vinte horas, com escala em algum país europeu. Era dezembro, e o Levante estava coberto de neve. Dizem que era lindo, mas eu não me lembro de nada.
Aquela, especificamente, seria uma viagem importante: meus avós me conheceriam, assim como alguns tios e primos, e eu seria batizada na Igreja Maronita de São George, situada na vila natal do meu pai, Darbechtar, no distrito de Koura.
Darbechtar vem de Darb Ishtar, que significa “Coração de Ishtar”. Ishtar é uma deusa mesopotâmica, equivalente à Afrodite, e, de fato, toda vez que volto para lá, sinto que caminho sobre uma terra de amor.
Assim como muitos filhos de imigrantes, eu nunca me senti árabe o suficiente, ainda que tenha crescido imersa nessa cultura tanto quanto na cultura brasileira. Talvez isso explique muito sobre minha inadequação interpessoal, que mais se assemelha a uma eterna dissociação. Por viver me deslocando entre tribos tão distintas, desenvolvi um sentimento geral de não-pertencimento. Sou muito brasileira para ser árabe, e muito árabe para ser brasileira.
Quando fui batizada, era o final do ano 2000. Meses depois, aconteceu o fatídico 11 de setembro: para os brasileiros, uma tragédia; para os árabes, a ruptura de um povo. Depois desse dia, a visão ocidental sobre o Oriente Médio, que já era defasada, piorou. Os árabes se tornaram os vilões: feios, perigosos, sujos, terroristas. Isso, obviamente, aumentou meu sentimento de distanciamento étnico e eu, filha de um libanês, também comprei a ideia deturpada de que ser árabe era errado. Assim, passei a deixar baixo esse aspecto da minha identidade: ninguém precisava saber que eu almoçava labne praticamente todos os dias ou que minha música favorita era Ah W Noss. Ainda me lembro da sensação estranha que me tomava ao responder, naquelas típicas atividades dinâmicas escolares ou para meus colegas de classe, qual era o nome do meu pai – “que nome é esse?!”, “como escreve isso?”.
Como minha mãe é brasileira, nascida no interior paulista, por mais de uma década, escolhi ser como ela: somente brasileira. Usava seu sobrenome italiano, com aquele orgulho que só brasileiro descendente de europeu tem, e falava da origem do meu pai como se fosse algo muito longe de mim. De tanto insistir, acabei realmente me afastando (mesmo que só emocionalmente) de toda a cultura. As músicas ainda eram cantadas, as comidas típicas ainda eram servidas, o idioma ainda era falado, mas não me sentia parte de nada daquilo.
Quando tinha seis anos, retornei ao Líbano durante as férias escolares. Dessa vez, já tinha idade para guardar lembranças. Era verão, o sol queimava acima dos cedros. O calor libanês, inclusive, é diferente do calor brasileiro: não é úmido, é seco… como um abraço.
Por um mês, vivíamos como uma família libanesa. À tarde, minha taita nos enchia de Top Juice, um suco de abacaxi libanês, e fazia bolo de tâmara. Aos finais de semana, íamos comer carne de carneiro com azeite fresco. De noite, visitávamos os amigos do meu pai e comíamos mais, sempre com as mãos. Íamos às feiras, repletas de tapetes persas, bijuterias e chaveiros de madeira; comprávamos uma coisa ou outra, ouvindo um idioma que não entendia muito bem.
Dizem que os árabes são rígidos. Não é verdade, é só mais um estereótipo. Mas meu pai, por coincidência, é. Sua impaciência impediu que ensinasse árabe a mim e aos meus irmãos. Ainda assim, aprendemos um pouquinho no ouvido: algumas expressões, muitos palavrões e várias canções. Eu repetia tudo, arrancando risadas dos meus primos, que me ensinavam novos xingamentos só para ver a reação do meu pai.
Eu amava o Líbano. Eu odiava ser árabe.
Sou a caçula entre três irmãos e sempre estudamos na mesma escola. Ao contrário de mim, minha irmã mais velha era a melhor aluna da turma e, talvez por isso, quando chegou minha vez de ter os mesmos professores que ela, eles já sabiam tudo sobre mim e minha família.
Uma vez, na aula de História, estávamos aprendendo sobre a Fenícia e minha professora me usou como exemplo: “hoje vamos falar sobre o país de origem da Carol: o Líbano, antiga Fenícia”. O sinal mal bateu e já vieram os meninos do fundão:
— Seu pai conhece o Bin Laden?
— Fala alguma coisa em árabe.
— Por que você não usa véu?
Essa última ainda ouço de adultos formados.
Outro professor, o de Biologia, havia estudado com meu pai na faculdade e se aproximado dele logo um ou dois anos após sua chegada ao Brasil. Por isso, ainda se lembrava dele com o sotaque forte e, por vezes, brincava comigo no meio da sala de aula, imitando o jeito de falar do meu pai. Eu ria, porque era o que se esperava… não era? Zombar de árabe era normal.
"Os árabes, por exemplo, são vistos como andarilhos de camelos, terroristas, de nariz adunco, lascivos venais, cuja riqueza imerecida é um insulto à verdadeira civilização. Sempre persiste a suposição de que, embora o consumidor ocidental pertença a uma minoria numérica, ele tem o direito de possuir ou consumir (ou ambos) a maior parte dos recursos do mundo. Por quê? Porque ele, ao contrário do oriental, é um verdadeiro ser humano."
Edward W. Said em seu livro "Orientalismo" (1978)
Na adolescência, abracei o Ocidente por completo. Só ouvia música se fosse em inglês, a capinha do meu celular era uma bandeira dos EUA e sonhava em casar com o Harry Styles. O Brasil era uma bosta. O Líbano era uma bosta. Só a Europa e a América do Norte eram dignas de admiração.
No meio dessa lavagem cerebral, aos 15 anos, voltei ao Líbano pela terceira (e, até agora, última) vez. Nessa viagem, conheci primos e tios que, até então, não conhecia, pois viviam no Canadá e nos Estados Unidos. Eles, ao contrário de mim, pareciam árabes o suficiente, apesar de viverem nos lugares mais anti-árabes do mundo. Falavam o idioma perfeitamente e tinham o mesmo jeito expansivo dos libaneses. Seus traços eram árabes, suas almas também. Foi a minha viagem favorita — a que mais lembro, a que mais me faz falta. E nela, pela primeira vez, eu quis ser árabe, ser tão árabe quanto eles.
A verdade é que, quando se nasce em uma cultura tão rica como a nossa (do brasileiro, do libanês) é muito difícil se manter afastado dela. Você pode até tentar: eu tentei e tenho amigos libaneses que até hoje tentam, mas é uma luta perdida.
Quando voltei ao Brasil, passei a assinar com o sobrenome do meu pai e a pesquisar mais sobre os aspectos históricos e culturais do Líbano. Comecei a ouvir Fairuz, a assistir filmes da Nadine Labaki, a ler Khalil Gibran e me permiti gostar de tudo.
Compreendi que o 11 de setembro foi sim um fato infeliz, mas que a resposta reacionária a ele foi, e continua sendo, mil vezes pior. As 2.977 vidas perdidas naquela tragédia são tão valiosas quanto as 600 mil iraquianas perdidas na guerra que a sucedeu. Assim como as centenas ou dezenas de milhares sírias, palestinas, libanesas…
Obviamente, ser filha de árabe é diferente de nascer, de fato, árabe. Nunca vou entender o que meu pai sentiu e sente, mas eu tenho uma ideia. Hoje, me arrependo de não ter insistido que ele me ensinasse o idioma, que me levasse nas outras vezes que foi sozinho ao Líbano, que não traduzisse mais as canções que sempre o ouvi cantarolando pela casa. Tento, ao máximo, mostrá-lo o quanto admiro nossa origem.
Talvez eu não seja mesmo árabe o suficiente, mas sinto orgulho do pouco que, afinal, eu sou.
Estou no começo de Relatos de um certo Oriente (Milton Hatoum) e lembrei da sua news. “Desde pequeno convivi com um idioma na escola e nas ruas da cidade, e com outro na Parisiense. E às vezes tinha a impressão de viver vidas distintas.”
texto lindo e sensível <3 que a sua vontade de aproximação e interesse por suas ambas culturas seja sempre crescente, minha amiga!!!